Zumbi

[sei que não é um divã na imagem, finjam que é um] 
[Fonte da imagem: Fuck Yeah Illustrative Art!]

[Favor, desligue sua música e celular. O local não permite o uso de tais aparelhos. Obrigada.] 

-Posso começar?

-À vontade.

-Ok. Doutor, acho que sou algum tipo de zumbi.

O silêncio pairou sobre nós dois naquele consultório pouco mobiliado. Achei que ele iria começar a rir de mim, da bobeira que falei, mas ouvi o leve farfalhar de sua caneta. Achei que depois da minha frase ele ligaria para o hospício. Ao invés disso, ele foi bem profissional ao perguntar:

-O que quer dizer com isso?

Hora de falar.

-Não quero dizer que sou o tipo de zumbi que sai gemendo e procurando cérebros para comer. Não. Eu sou um zumbi que busca sentimentos mortos.

De novo o barulhinho da caneta.

-Interessante... Explique-me um pouco mais.

-Bom, na verdade é bem fácil de entender. Todas as pessoas tem um passado factual, que inclui o passado sentimental. E é inevitável não se lembrar das coisas que aconteceram. No meu caso, passo os dias pensando em certas coisas, remoendo erros, cenas, palavras... e às vezes me alimento dessas lembranças, imagino o que poderia ter mudado, como seria se tudo tivesse dado certo. Isso faz mal doutor?

Esperei ele parar de escrever, e o silêncio parecia não terminar. Comecei a me sentir desconfortável naquele divã e sentei.

-Continue. – o psicólogo pediu.

-Acho que todos os dias eu entro numa espécie de montanha-russa. Penso nos altos e baixos que minha vida já deu, nas pessoas que conheci, as que me decepcionaram, as que continuam comigo há anos... E sempre os malditos sentimentos mortos encontram um modo de me perturbar! Tem vezes que choro de raiva por ainda lembrar, ou choro de saudade, ou senão choro por estar chorando! Parece loucura não é?

Respirei fundo, tentando encontrar as palavras para continuar desabafando. Era minha primeira vez no psicólogo, e queria colocar o máximo de coisas para fora.

-Tenho vontade de voltar no tempo sabe? Acho que muitas pessoas têm esse desejo. Eu voltaria para dizer a algumas pessoas “Não se aproxime de mim!”, e para outras eu diria “Vou te odiar em alguns anos, por isso não quero falar com você”. Ou senão eu diria “Sentirei sua falta apesar do que você fará comigo”. Mas eu não quero ter que pensar nessas pessoas! Se alguém inventasse um remédio ou injeção que anulasse as memórias isoladas, eu iria usar. Pelo menos para dar um tempo para pensar em outras coisas.

Respirei fundo, ignorando as gotinhas que molhavam o divã. Nem percebi que estava chorando, minha voz ainda estava firme. E eu precisava de algo mais forte do que o chá que o doutor havia me servido.

-Ao mesmo tempo em que tenho essa vontade, eu sei que não seria a mesma pessoa hoje. Talvez fosse melhor, ou pior, não sei. Em alguns aspectos eu seria pior, já que iria continuar confiando cegamente em todo mundo. Mas seria melhor em uma coisa: não seria magoada por quem amo. Não teria cometido tantos erros... Às vezes tenho vontade de morrer, mas isso é assunto para outra consulta.

Peguei a xícara de chá e tomei de uma só vez. Já estava morno, mas desceu como um descanso na minha garganta. O psicólogo continuou escrevendo rapidamente em seu bloco. Acho que falei por muito tempo sem lhe dar tempo para anotar minhas informações. Não sei o que ele escreveu durante os minutos que se passaram.

-O que você acha doutor? Será que estou doente?

Ele arrumou os óculos, arrastou a cadeira até ficarmos frente a frente e disse com a voz mais baixa que o normal:

-Se você for doente, então o mundo todo também é. Agora, responda uma pergunta: você ainda ama?

Aquilo me pegou de surpresa, mas respondi sinceramente:

-Sim, claro.

Então você tem salvação. Existem pessoas que não sabem mais amar e desistem. O único remédio que irei lhe passar é um verbo: viver.

O doutor saiu. Agradeci-lhe e saí do consultório muito mais leve. 

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  1. Era esse o texto monumental? Devia ter lido de manhã, é enorme e me deu sono... huashuahsuhasa Mas a parte que meus olhos leram tá ótima! huashuahusha

    bjs

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  2. nossa Dora, simplesmente perfeito! acho que qualquer dia desses, vou tentar fazer algo desse tipo também; talvez ajude mesmo, sendo uma espécie de alívio.
    adorei mesmo o texto, estava precisando ler algo assim.
    beijo!

    http://pontadeimpacto.blogspot.com/

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  3. Foi lindo Twin
    Esse final principalmente!!!
    Amei!!! Um beijão
    http://ondevaoasnuvens.blogspot.com

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  4. Como sempre, dona Isadora escrevendo maravilhosamente bem. Amei o texto e a mensagem. Continue escrevendo!! Amei muito!

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